Madonna - Um estudo sobre a construção da personagem

1. Apresentação

            Primeiramente, é de extrema importância esclarecermos que a escolha da cantora Madonna como ponto de partida para estes estudos se deu pela grande influência que a mesma detém nos mais diversos meios culturais e pela expressiva manipulação dos valores sociais, que vão desde simples questões familiares à questões religiosas, sexuais e políticas.

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            Atualmente, ela se constitui na personae[1] feminina de maior fama no mundo, sendo alvo de estudos dentre grandes e importantes universidades norte americanas, dentre elas, Harvard.

            Minha pessoal admiração pela cantora deu-se no ano de 1998, ano em que percebi sua irreverência e principalmente sua maneira camaleônica de ser. Nunca veremos Madonna igual, nunca irá repetir um trabalho, por mais satisfatório que ele tenha sido, ela está em constante processo de evolução, ela acompanha as mudanças adaptando-se da melhor forma possível.

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            Ao longo dos anos de graduação sempre ambicionei desenvolver este estudo, que para mim é apenas a ponta do iceberg, mas por questões curriculares, não foi possível, mas estes anos me serviram para amadurecer a ideia e também, possuir maiores atributos no quesito de tentar compreender essa fabulosa artista, enquanto personagem.

            Para tal realização, proponho aqui uma visão imparcial e clara, desmunida do afeto, normal dos admiradores.

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            Com atenção voltada para sua performance na turnê Blond Ambition[2] de 1990, analisaremos a estruturação necessária para a construção desse fascinante ícone, personagem, mas principalmente mulher, que há 30 anos influencia gerações.

2. A imersão na persona e personae

            Madonna possui cinquenta e três anos de idade, trinta deles dedicados à sua carreira que versa dentre as mais variadas áreas da arte (Madonna é cantora, compositora, escritora, diretora de cinema, atriz, bailarina e empresária); além de percorrer o mundo com suas turnês, quebrando sempre o próprio recorde de público.

            A cristalização e força desta personae, se deu nos anos 90, com a famosa Blond Ambition Tour,em que Madonnachocou o mundo com suas multifacetas e mudou definitivamente o rumo das apresentações musicais.

            Sendo assim, nosso estudo fundar-se-à na complicada tarefa de compreender a forma que Madonna faz uso para arquitetar a personae de si mesmo, tornando-a capaz de tocar os valores culturais de distintas sociedades e de forma atemporal.

            A antítese parece ser a figura de linguagem mais presente e significativa nos trabalhos e vida dessa personagem, Madonna é a personae criada através de uma série de complexidades e contradições, fator que se justifica pelo reflexo da vida pessoal nos trabalhos da mesma: a aluna brilhante que escarnece dos tradicionais valores americanos; a feminista que se tornou o maior objeto sexual do mundo; a menina que queria ser freira e foi condenada pelo Vaticano por explorar de forma herética os símbolos e sacramentos da igreja; a defensora do sexo seguro, cuja imagem e estilo de vida transmitem a mensagem oposta; e a rebelde ostensiva apontada pela revista Forbes como “a mais competente executiva da América”, sendo comparada a uma empresa de grande porte do mundo do entretenimento.

            Frente ao exposto e conforme BRAIT (2009, p.11), a personagem é um habitante da realidade ficcional; Madonna vai contra esse ponto de vista, uma vez que é sutil a percepção de quando se opera a personae e/ou a persona. Voltando a amparar-me na pioneira Blond Ambition World Tour, é de clara percepção que a cantora atribui-se um arquétipo feminino que contradiz (marca tênue da presença de antítese) logo em primeira instância com a denominação artística por ela utilizada: Madona (artisticamente: Madonna), que provém da língua italiana e tem significado religioso: Nossa Senhora que conforme a Bíblia Sagrada, é uma mulher imaculada, por ser a escolhida para a missão de trazer ao mundo o filho de Deus: Jesus.

               Porém, não é esta a imagem celeste apresentada na turnê, nela deparamos com uma Madonna que exibe ao público uma forma corporal propositalmente rígida, que deitada sobre a cama sugere, através de movimentos eufóricos, o êxtase sexual, episódio que demonstra com clareza a dubiedade adquirida pela personae, que apesar de ter nome “santo”, age de maneira inversa.

            Performance esta, que rendeu à cantora, suspensão de um de seus showsem Roma. Naépoca, o líder do catolicismo, o Papa João Paulo II, considerou o ato pecaminoso, uma vez que a cantora associava o nome Madona – de grande valor para os cristãos, à espetáculos que continham coreografias acentuadamente sexuais e abusivas para a concepção do papel feminino, tido pela sociedade.

            Conforme postula FOUCAULT (1999, p. 10):

A sexualidade era restrita à procriação. No espaço social, como no coração de cada moradia, um único lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais. Ao que sobra só resta encobrir-se; o decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpas no discurso. E se o estéril insiste e se mostra demasiadamente, vira anormal; receberá este status e deverá pagar as sanções.

            Acredito, portanto que a personae Madonna, foi e é a frente de seu tempo, funciona como uma virtual casa de espelhos, projetando de volta imagens distorcidas e fragmentadas, que ao mesmo tempo possuem o poder de deslumbrar e perturbar. Sendo assim, também é perceptível a desconstrução (e evolução negativa tanto quanto positiva) do conceito junguiano de arquétipo: modelo, padrão exemplar a ser seguido pela sociedade. Releve-se ainda, o fato de Madonna ser a personae fruto da desconstrução do próprio discurso, que mesmo pertencendo a um plano ficcional, interfere diretamente no plano real.

            Evidentemente a questão da personagem e do discurso não se dá em um aspecto isolado, isso só se faz possível a partir de que estejam embasados em valores ou conceitos que sejam do conhecimento comum (conhecimento do mundo), de um ou mais grupos sociais.

            Por toda a Blond Ambition, Madonna se utiliza de forma constante de três dos mais importantes valores sociais universais a serem desempenhados pela figura feminina, como: a família, a religião e o sexo.

            Hipoteticamente, essa pode ser a maior estratégia para o sucesso da cantora e de seus shows, uma vez que, mesmo estando nos mais diversos países, cuja a língua e cultura são distintas da sua, portanto, diferente da língua e cultura das quais concebeu-se o espetáculo, a mensagem principal de suas performances não é ferida, justamente por ser constituída de valores e ideologias universais. O que difere a cada bloco do show é a forma como Madonna se auto constitui ao alterar arquétipos e desconstruir discursos universais através de epígrafe, citação, paráfrase, referência e alusão.

            Para uma compreensão mais aprofundada, faz-se necessário a abertura de um parêntese para uma breve descrição desta turnê protagonizada por Madonna.

        A cantora inicia seu trajeto de loura ambição inserida num terno, roupa símbolo da masculinidade, logo depois transforma-se ao despir-se e aparecer usando um corpete, que marca a feminilidade.

         Transpassa então, a líder de uma gangue de mulheres e choca o público com encenações de violência e gestos que remetem ao universo dos homens; eis que surge então, suntuosa sobre o leito, remetendo à Cleópatra que cercada dos escravos eunucos, afirma ser uma virgem frágil, porém eufórica, enquanto simula o clímax frente à multidão e numa transgressão proposital, passa do sexual para o religioso em fração de segundos e assim, surge a pecadora penitente, em um cenário com colunas góticas como as de uma catedral, parecendo solicitar perdão à Deus pelo seus atos. Perdoada ou não, surge sobre um piano,como uma sedutora cantora de um cabaré dos anos 20 e mais tarde, apresenta o arquétipo cômico da garota materialista moradora do subúrbio que sonha com uma vida melhor e por fim, Madonna nos apresenta a imagem da mulher heroína, defensora das relações de afeto entre as pessoas, principalmente no que se diz respeito ao convívio familiar, através de uma coreografia que procura demonstrar os conceitos de amor, vida e humanidade/ solidariedade.

            Fortalecendo ainda mais a imagem agressiva e distorcida da personagem, estão as letras das músicas interpretadas por Madonna ao longo do espetáculo. Aqui, restringir-me ei à “Express Yourself”, considerada pela cantora como sendo uma de suas melhores canções, conforme TARABORRELLI (2003, p. 204).

            Em suma, a canção é uma convocação feminista para a guerra contra o sexo oposto. Aqui, Madonna é a garota anti materialista, que encoraja o público feminino a respeitar-se. E isso significa, no seu ponto de vista, ter um namorado que ama a sua cabeça e o seu coração. Se ele não a trata bem (e essa é a idéia revolucionária da canção, para a época em que foi composta: 1987), é melhor ficar sozinha.

            Ainda como elemento contribuinte à construção da verossimilhança da personae, há o figurino que a cantora usa para interpretar a canção: um sutiã cor de rosa brilhante, em forma de cone, desenhado pelo estilista Jean Paul Gaultier, que define sua criação como uma forte estrutura exterior protegendo uma vulnerabilidade interna que permanece oculta. (TARABORRELLI, 2003, p. 203).

            Segundo afirma CHALHUB (2006, p.51):

[...] a moda e seu objeto roupa também operam metalinguisticamente, no que refere-se ao campo da linguagem [...] A roupa enquanto sistema de sinal, contribui para a composição da mensagem.

         Uma vez que estando no corpo (suporte) da cantora, demonstra um recorte da seleção do código. Essa linguagem então comunica-se com o público e assim, acaba contribuindo de forma efetiva para a transmissão do que se pretende.

            É válido dizer também que, durante toda a época Vitoriana, o corpete era símbolo da nobreza, uma vez que o seu uso dificultava a realização de trabalhos manuais, causando ainda, muitos desmaios nas mulheres da época, tendo em vista que a peça força o corpo à forma de ampulheta.

            Amparando-me à FORSTER (1969), no âmbito da classificação, Madonna enquadra-se no tipo redonda, neste contexto, pela sua complexidade, por apresentar várias tendências e principalmente por ser dinâmica e multifacetada, constituindo imagens totais e, ao mesmo tempo, muito particulares do ser humano.

            Outro aspecto inovador já citado e que retomo, é o fato de não haver uma linha tênue entre criador e criatura no que refere-se à Madonna. Seria como se ela, enquanto persona penetrasse o mundo à parte da realidade, que fora criado pelo contexto de sua personagem ou vice versa, causando inclusive interferências na sua realidade, como podemos constatar no episódio em que a cantora é proibida pelo Papa de apresenta-se em Roma, o que demonstra que a personagem tem interferência na realidade.

            Isso contraria a teoria bakhtiniana (2006, p.177), que postula que o autor deve estar, sempre, na fronteira do mundo que ele cria, como seu criador ativo, pois se invadir esse mundo ele destrói a estabilidade estética.

            Conclui-se então que Madonna não é uma personagem que obedece a um esquema já estabelecido, mas vai se moldando de acordo com suas necessidades de expressão, num mundo que não está nas páginas de um livro, mas sim em nosso cotidiano e na mutante vida. Criador e criatura se fundem e fica difícil perceber se é ela, enquanto ser, que influi na personagem, ou se é a personagem que influi nela, enquanto ser.

3. Considerações finais

             Durante e após o desenvolvimento deste estudo, dei-me conta de que a personagem Madonna pertence a um plano não literário, seu suporte não são as páginas em branco de um livro, mas sim a vida e sua obra musical. O que torna o desenvolvimento de uma teoria em volta disso, ainda mais complexo e trabalhoso.

            Acredito ter evidenciado a questão da multiplicidade e sobreposição de mensagens e ideias trabalhadas pela cantora. Madonna não se consiste de um formato fechado e definido, ela está em constante processo de evolução, desconstrói o hoje, para construí-lo amanhã redefinindo-o, portando, livre dos conceitos criados por ela anteriormente.

            Outro ponto perceptível é a linha frágil que há entre persona e personae, ambas intercalam-se em diversas situações, causando uma certa confusão naquilo que Bakhtin classifica como estabilidade estética, para Madonna parece não haver um ponto limite para a atuação da personae, assim também como da persona, tanto uma como a outra possuem livre acesso ao mundo real assim como também ao ficcional, que carrega em si a personae, mas que possui como meio de manifestação a realidade. Ou como bem expõe SANTOS & OLIVEIRA (2001, p.28), que a personagem é o resultado de um processo no qual se imagina um ser que transita nas fronteiras do não ser.

            A habilidade de trabalhar com valores universais e de grande repercussão, conforme visto, é uma grande ferramenta para Madonna e contribui ainda mais para a credibilidade dos arquétipos por ela representados, modificados e até mesmo, criados. Um excepcional marketing.

            Madonna, enquanto personae, é a fusão de vários elementos encadeados, desde figurino, cenário e as mensagens transmitidas pelas músicas que interpreta, sempre trabalhando com a questão de ruptura de um padrão predestinado, ou a inversão do mesmo.

            Para melhor compreensão e comprovação da sobreposição de valores e arquétipos, dou-me o direito de fazer uma breve comparação entre duas apresentações distintas de Madonna, a primeira ocorrida em 2006 durante os shows da turnê Confessions; em que a cantora interpreta Live To Tell fazendo uma alusão nítida ao episódio da crucificação de Jesus, com direito a cruz e a coroa de espinhos, já na segunda apresentação, ocorrida, recentemente em janeiro de 2012 na final da Super Bowl, Madonna apresenta-se em outro contexto, agora com trajes semelhantes e fazendo gestos que sugerem a uma figura satânica, ou seja, desconstruindo a imagem e o arquétipo anterior, apresentado em 2006.

        Frente ao exposto e no que tange a este trabalho, considero que questões importantes e relevantes no que se refere à construção da personagem foram demonstradas e analisadas de forma singela, pois muitos seriam os aspectos a serem melhormente analisados. Acredito também, ter alcançado o objetivo de expor o quão Madonna fora (e é) racional ao fazer de si mesmo sua personagem.

            Ressalta-se que ela não obedece a um formato definido e imutável, muito pelo contrário, a dinâmica parece ser sua principal fonte de energia.

            A arte é assim, representa a sua época e é reinventada com o passar do tempo. Talvez seja essa a grande vantagem de Madonna sobre todas as outras personagens; seu fim não pode ser previsto e a renovação e inversão dos ciclos, é uma constante.

            Questionada sobre si certa vez, Madonna respondeu estóica: Je suis l’art.

 

4. Referências

BRAIT, Beth. (2009). A personagem. São Paulo: Ática;

BAKHTIN, Mikhail. (2006). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes;

CHALHUB, Samira. (2006). Funções da linguagem. São Paulo: Ática;

FOUCAULT, Michel. (1999). História da Sexualidade – A Vontade de Saber. São Paulo: Edições Graal;

FORSTER, E.M. (1969). Aspectos do romance. Porto Alegre: Globo;

O’BRIEN, Lucy. (2007). Madonna 50 anos – a biografia da maior ídolo da música pop. Rio de Janeiro: Nova Fronteira;

REIS, Carlos & LOPES, Ana Cistina M. (2002). Dicionário de Teoria da Narrativa. São Paulo: Ática;

SANTOS, Luis Alberto Brandão & OLIVEIRA, Silvana Pessôa de. (2001). Sujeito, tempo e espaço ficcionais – introdução à teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes;

TARABORRELLI, J. Randy. (2003). Madonna uma biografia íntima. Rio de Janeiro: Globo.


[1] Categoria fundamental da narrativa, a personagem evidencia a sua relevância em relatos de diversa inserção sociocultural e de variados suportes expressivos. (SANTOS, Luis Alberto Brandão & OLIVEIRA, Silvana Pessôa de. 2001, p.215).

[2] Foi para a época um marco na alteração do formato dos grandes shows. Através desta turnê, Madonna redefiniu o que antes não passava de apresentações musicais, através da união da música, da moda, da Broadway e a performance.