Seu Brasil e os Vizinhos

Já ouviram falar do seu Brasil? Não?! E dos vizinhos dele? Também não?! Pois então vou lhes contar o que me disseram sobre eles. Não me compreendam mal. Desde já quero que fique bem claro: não gosto e nem sou chegado a fofoca de qualquer espécie ou gênero. O que vou dizer é o que o povo anda comentando por aí. Não estou inventando nada. Posso aumentar um tiquinho aqui, diminuir outro pinguinho ali, carregar nas cores acolá - é inerente a toda narrativa -, mas é tudo verdade.
Dizem que seu Brasil é um cara gente boa - principalmente com o povo de fora. Festeiro de nascença, prestativo por natureza e amante por excelência do futebol e do carnaval. É fácil conquistar sua amizade. Tem temperamento dócil, avesso a balbúrdias e contestações. Não se incomoda em nada com o baixo preço das coisas que vende e o alto custo que lhe impõem quando compra, nem com as atitudes desonestas de certos cavalheiros que o cercam.
Por conta deste espírito alegre e comunicativo, andaram espalhando que ele não era muito chegado ao trabalho, dando-se melhor à indolência. Mas é deslavada mentira. Inclusive já ficou provado por a mais b que tudo não passou de sórdida intriga da oposição para desacreditá-lo perante a opinião pública. Até por que ele jura de pé junto que nunca soube de nada.
Segundo me disseram, a coisa se deu porque ele gosta de passar pela praia antes de pegar no batente; tem satisfação de criar e guardar dias feriados, santos, pontos facultativos, além de enforcar sextas e segundas imprensadas por estes dias festivos, prolongando assim o final de semana de lazer; não consegue ouvir o rufar de um tambor sem entregar-se irremediavelmente à folia. Essas bobagens.
Ora, por certo é pedir demais comportamento diverso neste calor infernal! Não concorda? Esse povo tem cada uma... Afinal, o trabalho não vai sair de lá mesmo, né não? Então pode ficar esperando que chegue o dia útil seguinte.
Seu Brasil - é o que se comenta - mora num bairro pobre da periferia do mundo e, apesar da sua alegria inata, é falto de educação, débil de saúde, ignaro nas importâncias e luzes da humanidade e não dá muita importância aos parentes.
Montou residência numa rua apinhada de gente lascada feito ele, sendo o único que não fala a língua corrente do local, mas tem se virado assim mesmo. Quem conhece sua casa, informa que é a maior do logradouro. Residência espaçosa, de vista indevassável para o Oceano Atlântico, bem arejada, salubre de clima, agraciada pela natureza com o que Deus criou de melhor, mas de mobília meio gasta e fora de moda. Seu povo é mal educado, cospe no chão e xinga palavrão.
Como disse acima, a vizinhança não é lá essas coisas - vizinho não se escolhe, né mesmo? Dá de tudo por lá. Tem contrabandista de produto importado de natureza duvidosa; tem ex e atuais traficantes de drogas; tem arruaceiro que implica com a imprensa e quer ser dono da rua (seu Brasil que não deixa); tem dançarino de tango com ares de jogador de futebol e arrogância de europeu; tem até um coroa magro e comprido que vive pescando no Pacífico, sem dar muita importância ao que se passa no bairro.
O mexerico mais recente é o compadrio esquisito que seu Brasil contraiu com dois dos vizinhos mais rabugentos da região. Um deles é aquele arruaceiro, que vende querosene sem qualidade e tem o gênio daqueles baixinhos invocados, dados a barraco. De uns tempos prá cá, danou a castigar os filhos mais que todo mundo, só para mostrar quem manda de fato em casa. É voz corrente que seu Brasil se junta com ele para falar mal dos demais vizinhos.
O outro é comerciante de gás encanado e tem um passado de envolvimento com tráfico de drogas pesadas. Gosta de posar de coitado para justificar os antecedentes não recomendáveis. Passa o tempo todo reclamando que os filhos estão esfomeados, esfarrapados e foram injustiçados pelo pessoal das redondezas. Por conta disso, vive aumentando constantemente o preço do combustível que vende para os consumidores da rua – principalmente para o seu Brasil, que é considerado o primo rico do bairro e tem coração generoso no trato com o povo de fora de sua casa.
Outro comentário que circula é que certa casa do bairro está fazendo uns puxadinhos em seu terreno para alugar a um cara do norte, tirado a polícia, guardar armas e bombas. Dizem que ele tem fama de valentão e mania de arrumar tumulto em quintais alheios. Quando tomou conhecimento da história, muita gente de bem da localidade chiou. Tentaram até impedir na marra a construção das meias-águas, mas o medo da ira do valentão foi mais convincente e arquivaram a idéia. O diabo é que esta casa fica vizinha a do arruaceiro e um desses puxadinhos está sendo construído bem perto do seu muro. Já pensou na confusão que isso pode dar?
Seu Brasil, de olho no comando da rua, tem usado toda diplomacia que suas poucas luzes permitem para tentar solver o problema, antes que se torne um conflito passível de arrastar o bairro ao caos incontrolável.

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Ainda pensando na hegemonia do logradouro, protagonizou há pouco outro lance sem pé nem cabeça. Desta feita, meteu-se numa briga de família num outro bairro, lá pelas bandas do centro.

Seu Brasil, como todos sabem, tem por hábito intrometer-se nas relações domésticas das outras casas, mesmo aquelas fora de sua vizinhança. Outro dia o povo das “Profundezas” desentendeu-se lá entre eles por causa de uma divisão de poder mal-ajambrada, cujo resultado não agradou a maioria. Briga de família, negócio entre parentes.

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No auge da confusão, puseram um deles para correr, expulso de casa com uma mão na frente e outra atrás (corre à boca miúda que era o chefe da malograda divisão, pois, como diz o provérbio popular: “quem parte e reparte e não fica com a maior parte, ou é burro ou não entende da arte” e me parece que de burro ele não tem nada).

Não é que Seu Brasil, assim que soube da notícia, apressou-se em acudir o expulsando, providenciando para ele couto seguro com cama, comida, roupa lavada e outras mordomias do gênero.

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Ora, isso desagradou profundamente aos demais parentes, que de pronto cercaram o esconderijo fornecido por seu Brasil de armas em punho, exigindo mais respeito às suas querelas internas e devolução do escorraçado.

Contam que o barulho ganhou tanto volume que até o valentão do norte andou ciscando por lá com seu jeitão de xerife do mundo. Chegou prometendo soltar umas bombas e meter o revólver na cara de qualquer um que não se dispusesse a por logo ordem na bagunça e arrumar a casa das “Profundezas” – acatando, claro, as condições irrevogáveis do seu entendimento “imparcial” e “democrático”.

Com esta mudança de cenário, Seu Brasil, que pode ser burro, mas não tem nada de besta, ficou miudinho, só resmungando de lado. No entanto, logo logo descolou com o fortão do norte uma autorização para manter o foragido sob sua proteção até o final da bronca, pespegando mais um ponto na disputada queda de braço entre ele e o vizinho arruaceiro pelo domínio da rua.

Mudando de pau para cavaco, mas ficando na mesma madeira, as más línguas não poupam sequer o modo como Seu Brasil trata o povo da sua casa. Marretam, com toda razão, a maneira arbitrária e pouco uniforme de ele distribuir justiça, riqueza e afago entre os moradores.

Para uns todas as regalias, prêmios e homenagens - são os escolhidos. Para outros pancadas, castigos e sofrimentos - formam o magote dos esquecidos. A vizinhança comenta que, dias atrás, seu Brasil aplicou severo corretivo num dos esquecidos que ousou denunciar roubos e falcatruas desabridas de um dos escolhidos. Isso é lá coisa que se faça...
Aqui abro um parêntesis para alguns esclarecimentos: não sou e nem tenho ideias comunista, pois, além de ser sinônimo de desempregado, sua doutrina, embasada na deturpada máxima de o que é meu é meu, o que é seu é nosso, não me convence do seu acerto. Antes, traduz a individualização da riqueza coletiva e a coletivização da pobreza individual. Portanto, não prego a horizontalidade da sociedade, apenas aponto injustiças flagrantes conferidas na casa do seu Brasil.
Mas, como ia dizendo, seu Brasil adota por princípio e conveniência agraciar os escolhidos com excessiva generosidade e favores desmedidos, sem parcimônia. Honra-os com quartos imensos, sinecuras vitalícias e farta concessão de impunidade purgativa de qualquer ato desabonador ou ilícito. A desproporção é tão acintosa que há quartos sem mobília, onde grassam de comum acordo a tiririca e a jurema; prebendas abandonadas ou com pouco uso, vencendo apenas a gorda remuneração mensal. Todavia, o que não falta mesmo são atos espúrios, atitudes ilegais e antiéticas, escândalos a torno e a direito. Nada, porém, que um perdão castiço ou um castigo ameno não apague ou releve.
Por outro lado, aos esquecidos ele destina restolho e situação degradante. São alcovas insalubres, mesadas minguadas e o caminho certo da desesperança e das masmorras, acaso cometam o menor deslize.
Um psicólogo me contou que este traço de personalidade talvez encontre explicação no crônico complexo de vira-lata que lhe impregna a alma e rebaixa sua auto-estima. Essa obsessão por inferioridade, força o nivelamento por baixo das necessidades dos esquecidos, enquanto favorece aprovação subserviente ao mais comezinho interesse dos escolhidos, acarretando desigualdades absurdas e inconciliáveis na qualidade de vida entre ambos os grupos.
Mesmo na contramão da tendência ecológica mundial, seu Brasil jacta-se de ter encontrado grande quantidade de óleo poluente num buraco fundo embaixo de uma de suas praias. Gaba-se que esse mineral representará a redenção dos esquecidos e a melhora geral da propriedade. Mas enquanto a redenção não vem, a turma de escolhidos reserva cada um seu belo quinhão e planeja como vai embolsar a parte do leão dessa descoberta. Acho que essa tal redenção vai atrasar mais um bocado. Olhe lá se vier...